Texto interessante que saiu no Jornal do Comércio de Recife
Fonte: Jornal do Comércio de Recife
Autor: (vide final do artigo)
Link: http://jc.uol.com.br/2004/12/21/not_79917.php
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Sobre aviões e amendoins
Recife, 21 de dezembro de 2004.
Lembro quando eu era pirralho e meu pai viajava de avião (sempre para o Rio de Janeiro, umas coisas do Banco do Brasil), havia uma espécie de comoção em casa. "Viagem de avião!". A palavra já me deixava assim, perplexo, quase emocionado. Como era que uma pessoa podia voar num besouro gigante daqueles, numa altura sem fim, e chegar ao Rio de Janeiro horas depois?! Bem, a volta era gloriosa, com relatos e detalhes sobre a comida servida, a sobremesa, os cobertores, as bebidas, e lembro que sempre vinham uns fones de ouvido de lembrança, que não serviam para porcaria nenhuma, mas, afinal, eram os "fones de ouvido do avião!". Isso sem falar nos filmes que eram exibidos e a beleza das aeromoças, que pareciam ter saído diretamente dos concursos de miss, quando miss era miss.
Bem, não sou tão velho assim, mas acho que nossa aviação comercial entrou num processo de definhamento físico e espiritual. Todo dia vejo notícias de que a Vasp vai quebrar, que a Transbrasil está irremediával, que a outra está devendo horrores à Infraero. Constatei isso in loco no último final de semana, quando fui a Vitória, no Espírito Santo, participar de um evento ligado à Mídia, Violência e Direitos Humanos.
Encarei uma viagem interminável pela Gol, que saiu do Recife, foi para Salvador, Belo Horizonte e, finalmente, Vitória. A julgar pelo atendimento de bordo, diria que estamos a poucas horas de viajar levando a marmitinha, para não passar fome. De Recife a Salvador, aquelas informações de praxe, as aeromoças derrubando aqueles negócios para "caso de despressurizaçao", que não despressuriza nunca, e depois - tome amendoim com barra de cereais! Quando perguntei se tinha pelo menos uma cervejinha em lata, quase levei um carão. Imagina! Cerveja! Pedi uma Coca-Cola. Só tem Pepsi. Pensei em pedir duas pedras de gelo, mas fiquei na minha. Não queria levar outro fora. Procurei o lugar para os fones de ouvido. Nada. Uma televisãozinha, nada. Um mísero, um raquítico e magricela de um jornal, nem sinal. A sorte é que tinha levado um livro. Nunca pensei que literatura combinasse com amendoim e barra de cereal. Não combina mesmo.
A aeronave parou em Salvador e decolou rumo a Belo Horizonte. É agora, pensei. Vai sair pelo menos uns dois acarajés apimentados, made in Pelourinho. Daqui a pouco, veio a aeromoça (elas nem são mais tão bonitas como antigamente) - tome amendoim com barra de cereais! ***, pensei, nunca comi tantas barras de cereais na vida! Em Belo Horizonte, trocamos de aeronave (levei um esporro porque estava atrasando o vôo, eu sempre pego a porta ou plataforma errada) e peguei a minha cadeirinha, juntinho do banheiro. A aeronave estava a 10 mil metros de altura (pelo menos foi o que o comandante informou, em um português rápido e um inglês atropelado), e pensei nos pãezinhos de queijo bem quentinhos que seriam distribuídos com os passageiros. Lá vem a outra aeromoça, meio apressada:
"Aceita amendoim, senhor? E barra de chocolate?"
Sim, amigos, a vida não está fácil para quem viaja de avião, mesmo que esporadicamente, para discutir coisas em seminários. Horas e horas à base de amendoim e barra de cereal. A volta foi ainda pior, porque saí de Vitória, fui para Belo Horizonte, Brasília e não sei onde mais, antes de chegar ao Recife. Cheguei ao aeroporto arrasado de cansaço, com a bolsa lotada de saquinhos de amendoim e barras de cereal. Saí de Vitória às 15h30 e cheguei ao Recife às 23h30. Se soubesse que teria oito horas pela frente à base de amendoim e cereal, teria preparado um sanduba e o levaria intocado dentro do bolso.
Poderia invocar minha memória da saudosa avó Zeneuda, que preparava galinhas antológicas com farofa, dentro de uma daquelas latas de Mucilon (das grandes). Mas a minha avó já morreu, eu não sei fazer galinha com farofa; minha mãe, que sabe, está em Fortaleza. Enquanto o mundo da aviação não dá uma melhoradinha, acho que vou viajar menos, discutir menos, vou ficar escrevendo minhas besteirinhas por aqui mesmo, tentando ficar mais sossegado, sem me preocupar tanto com as coisas do mundo.
Outra solução caseira é pedir ao meu irmão, Antônio José, para fazer a gentileza de viajar no meu lugar. Porque nunca vi, deus do céu, uma criatura gostar mais de amendoim na face da terra do que esse meu irmão.
SAMARONE LIMA tem 35 anos, é jornalista e autor dos livros Zé (1998) e Clamor (2003)






