TURISMO: "Portugal no tempo" - Gonçalo Cadilhe

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TURISMO: "Portugal no tempo" - Gonçalo Cadilhe

Mensagem por AeroEntusiasta »

Fonte: Expresso, via Angonoticias - Sep 02, 23:59

«Portugal no tempo»
por Gonçalo Cadilhe

Uma cidade angolana que foi portuguesa devia ser agora de toda a Humanidade: eis o apelo de um viajante que correu o mundo e sabe o que diz

A influência portuguesa está ao virar de cada esquina. Nas fachadas, como a da casa que aparece ao lado, mas também nos bens de consumo, tal como se percebe pelas marcas anunciadas na parede de uma mercearia.

São onze da manhã de uma noite não dormida quando chego ao Lubango. Parti de Santa Clara, a fronteira de Angola com a Namíbia, às cinco da tarde de ontem. Foram necessárias 18 horas para conduzir 450 quilómetros - tento fazer contas, indeciso se devo incluir ou não na média horária as três horas de descanso, entre as duas e as cinco da manhã, debaixo de um embondeiro.

Estou tão cansado que acabo é por não fazer contas nenhumas. Já não sou um adolescente, noites em branco dão-me cabo do dia. Agora, devia recolher ao quarto, tomar um duche, deitar-me e descansar. Mas Lubango será para mim uma viagem no tempo, e a primeira etapa dessa viagem é a adolescência. Não a que vivi quando era a minha altura de a viver, mas a que estou a viver agora - porque me passa o sono, e uma energia alegre substitui o cansaço quando chego ao Lubango. Uma energia adolescente.

Apetece-me devorar o centro desta cidade. Caminhar por todas as calçadas portuguesas, tomar um café em todos os cafés que apresentam o triângulo Delta pendurado por cima da porta, comprar carcaças e papo-secos em todas as mercearias e minimercados que se chamem «Tio Patinhas», «Silva & Silva», «Elite», «Benfica», pedir o prato do dia em qualquer tasca que proponha «bacalhau com todos» e «prego no prato».

Estas banalidades que me estão a emocionar têm de ser postas em perspectiva: ando a viajar há cinco meses por África, e de repente chego a casa sem sair de África. «Vá para dentro lá fora», podia ser o «slogan» desta cidade se ela se quisesse promover turisticamente em Portugal.

A segunda etapa da viagem no tempo é a infância - a minha. Desta vez regresso efectivamente aos anos da escola primária quando vejo a fachada das escolas primárias da antiga cidade de Sá da Bandeira. E as outras fachadas: o hospital, o grande hotel, o prédio da cooperativa, o palácio de Justiça, a sede do grémio, a estação de comboios, a garagem de autocarros. São as fachadas que vigoravam nas cidades portuguesas da minha infância, e o Lubango é uma cidade ancorada em 1975 - o meu primeiro ano na primária, o último ano em que se construiu aqui.

A terceira etapa desta odisseia temporal deixa-me no Estado Novo. Estamos algures entre o princípio da década de 40 e o final de 60. Enquanto a vida cultural da época definhava na retórica conservadora e pardacenta do salazarismo, a arquitectura mexia-se com vigor para tentar dar forma, luz, símbolos ao Império português.

Muito do que se projectou pelo território nacional era copiado do que se fazia lá fora, tentando uma improvável mistura de modernismo com o estilo ruralista da «casa portuguesa» - não sei se em termos de História da Arquitectura essas obras terão hoje alguma importância. Mas, em termos de memória colectiva portuguesa, têm. Representam a «nossa» ditadura, e uma ditadura de 50 anos é para sempre.

Em Portugal não existe nenhum centro urbano íntegro e fiel a este período, por três razões. A primeira é óbvia: porque, antes dele, já lá estavam séculos de construções medievais, barrocas, neoclássicas. A segunda é compreensível: porque este período acabou há muito pouco tempo e não conseguimos ainda atribuir importância histórica à arquitectura que lhe corresponde. A terceira razão é, enfim, psicanalista: porque essa arquitectura reporta a uma época de miséria e opressão da qual tentamos subconscientemente cancelar a recordação. Por isso, deitou-se abaixo, construiu-se por cima.

Passeio no Lubango e reparo pela primeira vez que, afinal, também há uma certa beleza na construção desses anos de miséria e opressão. Há uma certa dignidade nessa arquitectura que devia espelhar em telhas e betão armado a fé inabalável do regime nos destinos grandiosos do Império. Os mosaicos com figuras religiosas, a cal com as palmeiras, os azulejos vidrados, as tabuletas em néon, o alumínio, ganham um novo significado. Não apenas os imponentes cine-teatros de Cassiano Branco, as linhas rigorosas de Cottinelli Telmo, mas também a geometria implacável do anónimo desenhador civil, o mau gosto ingénuo do dono da vivenda do bairro, adquirem na Sá da Bandeira colonial o estatuto de «testemunho histórico».

Lubango é uma cidade portuguesa parada no tempo. Em Portugal já não existe nada assim. Em Angola também não. Ao contrário de Lubango, a maior parte das cidades angolanas foi semidestruída pela guerra. E as que já se recomeçaram a reconstruir não têm qualquer reverência pelo património urbano português. Nós próprios não tivemos essa reverência, nos anos 80 e 90, com o nosso património; não serão eles, os angolanos, que a vão ter. São questões que não lhes dizem respeito. Lubango diz-nos respeito, e ainda vamos a tempo de a preservar para a memória futura de Portugal.

Lubango devia candidatar-se a Património Mundial UNESCO, e Portugal devia tomar como missão, como desígnio nacional, esta candidatura. Portugal devia oferecer-se a Angola para fazer desta cidade um monumento único no género no mundo: recuperando-a, investindo nela, ajudando-a a reencontrar um sentido, uma razão de ser.

Que podia ser a partir da universidade, que é o mesmo motivo que diferencia Salamanca, Perugia, Williamstown. Ou a partir de cursos intensivos de língua portuguesa para estrangeiros - tal como as «cidades UNESCO» de Oaxaca e Antigua, na América Central, o são para a língua espanhola. Lubango podia ser até a capital dessa pátria imensa que é a língua portuguesa, porque não? Mais prosaicamente, podia ser um dos pontos cardeais do turismo no Sul de África, ligada ao Parque Etosha, às cataratas de Vitória, ao delta do Okavango. E, naturalmente, a razão de ser podia ser a arquitectura. Um museu vivo do modernismo, um poema em art-deco plantado no planalto austral africano.

O isolamento e a incipiente actividade económica ainda não atearam no Lubango o «boom» da especulação imobiliária. Mas o progresso que está a tomar conta das cidades angolanas vai chegar em breve. Um patético «arranha-céus» já está projectado em pleno centro, mesmo entre o Grande Hotel da Huíla e a universidade. Se for para a frente, a integridade do Lubango terá sido estilhaçada e a cidade nunca será Património UNESCO. O próprio Grande Hotel está a ser «remodelado» sem qualquer sensibilidade ou conhecimento técnico. Poderia ser um dos grandes hotéis de charme do mundo, está-se a tornar numa caricatura de si próprio.

O meu apelo não é o de glorificar o período colonial, nem o de o mascarar esteticamente. Não é o de aproveitar o valor urbanístico desta cidade para oferecer conclusões erróneas sobre a presença portuguesa em Angola. Não quero que a escola Mandume se chame outra vez Diogo Cão, nem que as canções da Cecília Meireles venham substituir as do Paulo Sousa nas emissões das rádios locais, nem que a própria Lubango volte a ser Sá da Bandeira. Não se trata de criar um farol europeu no continente africano, nem de retirar soberania a África.

Trata-se simplesmente de esperar que o Lubango compreenda a tempo uma coisa que Portugal não compreendeu: hoje em dia não existe nada mais progressista do que a preservação das próprias raízes, da própria identidade, do próprio património cultural. Esperemos que o Lubango saiba conjugar o passado de Portugal com o futuro de Angola.
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