por Jorge de Souza
- Companhia: Aeroflot Russian International Airlines
- Vôo: SU354
- Data: 22/05/1997
- Aeronave: Ilyushin Il-96-300
- Prefixo: RA-96015
- Trecho: GRU/GIG/SID/SVO


À primeira vista, parece um vôo como outro qualquer. Apesar do horário um tanto estranho (decolagem de São Paulo às 7 horas, com apresentação para embarque a partir das 5h -- 5h da manhã!), o balcão do check-in está decorado com um tapetinho vermelho, as atendentes são simpáticas, o serviço é eficiente e uma placa grande indica claramente o nome da empresa, o destino e o número do vôo -- tudo, enfim, que um passageiro espera encontrar na hora de voar. Mas o primeiro indício de que, apesar das evidências, o vôo 354, da empresa russa Aeroflot, com destino a Moscou, não é um vôo convencional, vem logo que você põe os pés dentro do avião. E por causa do próprio avião.
O Ilyushin Il-96-300, que uma vez por semana parte de Moscou, vem até São Paulo, dá uma passadinha no Rio e retorna à Europa na mesma hora (daí a esquisitice do horário), é uma espécie de Airbus russo, com a vantagem de ser mais espaçoso até do que um Boeing 747. Sua cabine, ampla como um salão de baile e alta como uma catedral, dá a impressão de estar eternamente vazia, mesmo se os 235 assentos estiverem entupidos de gente -- o que, felizmente, quase nunca acontece. E como não existem divisórias entre as classes (aliás, praticamente nem classes -- só uma cortinona vermelha entre a executiva, que também faz o papel de primeira, e a econômica ou turística), a impressão é de que está faltando alguma coisa a bordo. Além, é claro, dos bagageiros de teto para os passageiros das fileiras centrais que, sabe-se lá por que, no mais moderno avião russo também não têm. Talvez porque os russos não tenham o hábito de fazer tantas compras quanto os brasileiros. Talvez porque o avião venha de Moscou e não de Miami.
O jeito russo de ser (robusto, espartano e direto, mas sem grandes preocupações práticas e nenhuma estética) ajuda a explicar outras coisas aparentemente inexplicáveis do avião. Por exemplo, o fato de só existir um telão a bordo -- quem senta atrás não vê, embora ouça bem, pois como também não existem fones de ouvido, o som é ambiente e atinge todo mundo. Até quem não quer ouvir. Outras peculiaridades são os avisos luminosos de apertar cintos e não fumar, que de tão exagerados não apenas avisam os passageiros como iluminam a cabine toda, e o sinal de chamar o comissário, que embora seja individual e tenha um discreto botão em cada poltrona, toca feito uma sirene no avião inteiro. É constrangedor.
Em compensação (e aqui vem o melhor de tudo!), o espaço a bordo é simplesmente incomparável. O Ilyushin da Aerofot (justamente ainda chamada de Aero "ploft", numa alusão ao tempo em que pertencia à extinta União Soviética e ostentava índices de acidentes nada lisonjeiros -- hoje tudo mudou e ela está entre as mais seguras do mundo) tem, com certeza, a maior metragem quadrada por passageiro dos céus do planeta.
Enquanto na maioria dos outros aviões é preciso algum contorcionismo para encaixar as duas pernas num espaço onde mal cabe um braço, aqui ocorre justamente o contrário: para alcançar o descansa-pé é preciso se esticar todo. Eu, por exemplo, só consegui tocá-lo com a ponta do dedão e logo desisti, porque bem melhor do que isso é poder cruzar as pernas confortavelmente e nem sequer esbarrar no assento da frente. Só quem já viajou num charter lotado da TowerAir sabe o que isso significa.
Nada, porém, se compara ao banheiro. Fiquei um bom par de minutos lá dentro, secando minhas mãos com uma toalhinha de papel (que, por sinal, era idêntica ao guardanapo das refeições, de tal forma que até hoje não sei se limpei a boca com uma espécie de papel higiênico ou inadvertidamente usei um guardanapo para... bem, você sabe o que), só para poder observar melhor aquela maravilha da engenharia russa. Vá lá que a tranca lembrasse a de um castelo medieval e que a maioria dos símbolos fosse absolutamente incompreensível para nós, ocidentais (o que, afinal, significava aquele pente sobre uma camisa?). Mas, em termos de espaço, aqueles banheiros eram tão grandes que dariam para dançar um balé lá dentro.
Surpresa maior, só mesmo quando descobri que o vôo tinha uma escala técnica numa certa Ilha do Sal. Ilha do Sal? Meu Deus, um mapa, rápido. Onde será isso? Abri, então, a revista de bordo, consultei o mapa e, sim, lá estava ela: Ilha do Sal, arquipélago de Cabo Verde, ex-colônia portuguesa na costa da África -- por que, diabos, um avião pararia ali? A resposta veio no portunhol com sotaque russo do comissário de bordo: "Isscala teccnico. Abassstecimiento, limpessa e trôca do tripulacião". A parada é curta (não menos que 1, não mais que 2 horas, dependendo da boa vontade dos nossos irmãos cabo-verdianos), mas interessante. Primeiro, porque quebra a viagem em duas e acaba com aquele negócio de horas e mais horas sentado -- do Rio até a Ilha do Sal são apenas 6 horas de vôo, de lá até Moscou mais 8. Segundo, porque como em Cabo Verde se fala português, você pode se vingar um pouquinho dos russos de bordo -- ali são eles que não entendem nada.
De qualquer forma, os camaradas russos aproveitam a parada para refazer o estoque de vodca a bordo, já que, estranhamente, dali para a frente o serviço de bordo, até então farto e variado, começou a minguar. O lauto almoço servido após a decolagem do Rio ("carne, frango ou peixe?", quis saber o comissário, quase se desculpando por não ter caviar), transformou-se num semilanche no jantar e culminou num paupérrimo pão com manteiga no café da manhã seguinte. Mais algumas horas de vôo e estaríamos dividindo copos de água a bordo. Mas, tudo bem. Pelo menos a passagem é barata -- muito barata, se você considerar que Moscou fica ainda mais longe do que Londres ou Paris. Por apenas 850 dólares (940 na alta estação), vai-se do Brasil à Rússia, com direito a esticar as pernas no avião e até recuperar as energias em Cabo Verde (por mais 75 dólares, pode-se, também, passar um tempo lá). E isso, decididamente, não é todo vôo que oferece.
Abração!

