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TURISMO: "Um barco para o Congo" - Gonçalo Cadilhe

Enviado: Qua Nov 01, 2006 20:05
por AeroEntusiasta
Fonte: Expresso, via Angonoticias - Sep 30, 22:42

«Um barco para o Congo»
por Gonçalo Cadilhe

Finalmente acontece no cais do porto de Luanda. O momento que me tem sido negado durante toda a viagem por Angola desenrola-se por fim entre a linha de água e a fila de guindastes: a operação stop, o controle da identidade, a verificação dos documentos.

São três homens fardados, neste caso da Guarda Fiscal. Podia ser qualquer outra polícia angolana, o fim seria o mesmo: encontrar uma falha, uma falta, um problema, e proceder a uma multa draconiana. Ou então pagar discretamente a «gasosa» informal, imediata, em dólares, de preferência. Cada um dos três folheia demoradamente o meu passaporte. «Onde está o título de residente?», pergunta um. Explico que não sou residente, estou de passagem. «Veio só encher os bolsos com os nossos recursos naturais», acrescenta outro. «E não deixa nada, nem para o mata-bicho da gente», conclui o terceiro em tom reprovador.

Esclareço: «Nada disso, sou um jornalista português e vim escrever para o meu jornal sobre a nova Angola. E até agora», concluo, «só têm acontecido coisas boas para escrever». Silêncio. O mais novo ainda vai dizer qualquer coisa sobre o mata-bicho, mas o mais graduado corta-lhe a palavra. «Está tudo em ordem, tio. Pode prosseguir».

Procuro o comandante Mário «Tito», sei que navega com regularidade para Cabinda. A ideia de continuar por terra até à fronteira com o Zaire (actual República Democrática do Congo), atravessar o rio e depois voltar a entrar em território angolano, apresenta vários problemas. As péssimas condições da estrada até à fronteira, é um deles. Outro é o de me ir meter no Zaire logo neste momento em que lá anda tudo aos tiros. Outro ainda: se saio do território angolano, mesmo que só por algumas dezenas de quilómetros, tenho de pedir um novo visto para reentrar no enclave de Cabinda: tempo e dinheiro deitados fora.

Há uma última possibilidade: seguir por estrada até à fronteira do Soyo, e de lá apanhar o barco para Cabinda. Mas esse barco é precisamente o mesmo que se encontra à minha frente no cais de Luanda. Assim, resolvo todos esses problemas embarcando agora. O comandante Mário recebe-me com «nonchalance», explica-me que está habituado a ter viajantes como eu: «Desde que faço esta rota, já és o décimo sétimo que me aparece. Tenho-os contado a todos. Os últimos antes de ti eram dois velhotes alemães com as motos. Vinham na direcção contrária».

Pergunto-lhe há quanto tempo faz a rota: três anos. Dá uma média de um viajante de nove em nove semanas. Não lhe digo, mas ser o décimo sétimo num planeta de turismo massificado é uma grande honra. Se ele soubesse a torre de babel que o espera daqui a uns anos, quando o país finalmente se organizar e os turistas começarem a aparecer, abria era uma classe turística dentro do seu cargueiro.

Por enquanto não há. «Não te preocupes com a dormida e as refeições, fica por nossa conta», diz-me. A viagem demora 15 horas, cada um que traga o farnel e que se deite onde quiser. Mas o comandante Mário trata-me como hóspede de honra: terei um lugar na mesa dos oficiais e um beliche no camarote da tripulação.

O ambiente no camarote é um bocado congestionado - provavelmente quando o navio foi construído, nos estaleiros de Peniche, este cubículo destinava-se a servir de despensa. Mas não me queixo: no convés teria dormido muito pior. Às cinco da manhã, o comandante acorda-me. «Sobe que vais ver uma coisa que nunca viste na vida.»

Subo. Primeiro acho estranho já ser dia às cinco, depois compreendo: é noite na mesma. A luz não vem do sol mas da chama de uma plataforma petrolífera a centenas de metros de distância. Fico a olhar para esta luminosidade que reduz a superfície da água a um reflexo suave de cores surrealistas e me traz à memória bandas desenhadas de ficção científica para americanos.

Tem razão: nunca vi nada assim. Bem pode ir preparando a classe turística no seu navio, que há-de ter a lotação esgotada. O comandante Mário estudou vários anos em Moscovo, fala russo perfeitamente, conhece bem África, o Ocidente, o museu Hermitage, o semanário EXPRESSO. «Estamos a passar agora a foz do rio Congo», diz-me, e eu fico a pensar na coincidência de ter vindo conhecer um lobo-do-mar que podia ter saído das páginas de Conrad - precisamente no coração das trevas dos seus romances. É por essa sugestão de cavalheirismo e compostura na orla da civilização que sou apanhado de surpresa quando ele termina a sua garrafa de água. Fecha-a bem com a cápsula, e lança-a borda fora.

Não escondo a minha reprovação: «Ó Mário, isso não é de gente civilizada». Sorri para mim. «Chocado? Dei ordens à tripulação para fazer o mesmo a todas as garrafas a bordo do navio». Insisto: «Não é muito ecológico». Pelo contrário, explica. «Se eu guardar as garrafas no lixo, chego a Cabinda e elas vão parar a uma lixeira onde ficam anos a apodrecer. Pior ainda, podem ser queimadas e o plástico torna-se gás na atmosfera. Mas se eu as deitar ao mar», continua o comandante, «dentro de horas estão a dar à praia. É a direcção das correntes aqui. E rapidamente vão ser recolhidas e aproveitadas». Conclui: «Na Europa, nunca faria isso. E também não deito uma única lata, ou pilha, ou matéria inorgânica ao mar. Mas uma garrafa de plástico em África, meu amigo, vale ouro. Vais ver, quando desembarcares».

Sim, é verdade. Servem por exemplo para solas de sandálias, depois de serem marteladas e aplanadas. São óptimos contentores para vender óleo e vinho artesanal de palma. Servem para medir com precisão o combustível à venda nas bancas improvisadas que substituem as bombas de gasolina que não existem. E em Pointe-Noire, já no Congo, têm um uso romântico: são enchidas com amendoins descascados, que depois mulheres sentadas na marginal vendem aos namorados que passeiam ao fim da tarde junto ao mar.

Eu também passeio pela marginal ao fim da tarde, dia após dia, mas o meu passeio não tem nada de romântico. Espero que o calor acalme e a chuva passe para sair por fim do quarto do hotel, antes que a insegurança da noite desça sobre a cidade. É a minha breve hora de liberdade.

Estou preso em Pointe-Noire, à espera que o correio traga uma máquina fotográfica comprada em segunda mão a um amigo fotógrafo de Portugal. A minha deixou de funcionar. Talvez pela vibração sibilina do navio, talvez pela humidade implacável do Equador. Talvez pelo equilíbrio natural das coisas: tudo tem corrido da melhor forma nesta viagem por África acima, por algum lado o azar tinha que entrar. Foi, portanto, pelo lado material. Antes assim.

Pointe-Noire é o único lugar com infra-estruturas decentes num raio de vários países - a cidade vive em função dos funcionários ocidentais das petrolíferas e dos magnatas da madeira, do ouro, dos minerais. O nível de vida deste gueto ocidental é extremamente requintado, e caro. Tento manter-me dentro do meu orçamento, o que significa pagar o hotel, comprar no supermercado para comer no quarto, e pouco mais.

Espero a cegonha que vem do norte, com a nova máquina. Aguaceiros, humidade, suor, abacates, telefonemas para a empresa de correios, uma cerveja de vez em quando, acompanhada por uma garrafa de plástico de amendoins descascados, à espera de melhores cidades, de melhores dias, de mais fotografias.