TURISMO: "Ruas de Luanda" - Gonçalo Cadilhe
Enviado: Qua Nov 01, 2006 20:04
Fonte: Expresso, via Angonoticias - Sep 30, 22:47
«Ruas de Luanda»
por Gonçalo Cadilhe
Ao longo da minha viagem por África acima tenho tido a companhia virtual de vários leitores que vão enviando «e-mails» com palavras de apoio e amizade, também com informações e conselhos. Quando encontro o cibercafé, reencontro amigos.
Há umas semanas escrevi sobre o cantor romântico português Eduardo Jaime, um artista de sucesso na África do Sul entre as décadas de 50 a 70. Eu tinha conhecido por acaso o filho do falecido cantor, o Eddie da Silva, e assim surgiu o meu interesse pelo pai. Talvez houvesse um qualquer mistério no passado de Eduardo Jaime: desembarcou em Durban com 20 anos e nunca mais regressou a Lisboa, nunca respondeu às cartas da mãe, nem sequer comentou jamais com o filho a vida que tivera, a família que deixara, em Portugal.
Algum tempo depois desta crónica ter sido publicada, recebi um «mail» do leitor Fernando Araújo, do Porto, que tinha sido o companheiro de cabina de Eduardo Jaime, no transatlântico de Portugal para Angola, em 1952. Tinham ficado amigos. O Fernando Araújo convidava-me a ir ao Porto um dia para falarmos do cantor. E concluía: «Se o Gonçalo passar por Luanda, tenho lá um grande amigo. Vá visitá-lo e dê-lhe um abraço meu».
Entregar este abraço é uma das coisas que tenho para fazer em Luanda. Tenho também uma rua para descobrir: a leitora Ana Amorim, do Algarve, pede-me para lhe enviar uma fotografia da casa onde viveu até aos 18 anos: «A rua na altura chamava-se Vereador Jaime Amorim, que era o meu avô», esclarece a Ana, «mas agora já não deve ter esse nome». Estas são as coisas importantes. As urgentes são: encontrar um cargueiro para Cabinda e obter um visto para a Nigéria.
O visto para viajar pela Nigéria atormenta-me desde o início da viagem. Viajar pela Nigéria atormenta-me ainda mais, mas isso é outra história. Se pudesse, não ia por lá, mas as alternativas são poucas: ou atravesso o Chade, que está à beira de uma guerra civil; ou tento um hipotético cargueiro dos Camarões para o Benim, passando ao largo da Nigéria. Por enquanto, prefiro tentar o visto nigeriano.
Mas as embaixadas nigerianas têm a reputação de dificultar bastante a atribuição de vistos a turistas. Do hotel, telefono à secção consular a perguntar que documentos são necessários: três fotografias, um bilhete de avião de saída do país, um atestado do meu banco a comprovar a minha sólida conta bancária, uma carta de um cidadão nigeriano a convidar-me a visitar a Nigéria. Não tenho nada disto, só as fotografias. Ainda por cima, dizem-me que demora um mês. Antes de me dar por vencido, posso tentar uma conversa com o cônsul, explicar-lhe que estou a escrever sobre África e mostrar-lhe um livro meu. Mas não tenho muitas ilusões.
Ao lado do hotel encontra-se uma agência de viagens. Entro e pergunto direcções para a embaixada. «É ao pé da Praça da Unidade Africana, no bairro Miramar». Posso ir a pé? «Não, é muito longe». Um tipo sentado, talvez um cliente da agência, oferece-se para me levar lá. Quando saímos fala-me em inglês: «Chamo-me Obi, sou nigeriano». Começo a desconfiar, penso em todas as histórias de falcatruas e vigarices que se contam da Nigéria. «Só um minuto, que chamo o meu ‘chauffeur’». Telefona, aparece rapidamente um carro. Penso, já mais calmo: «Bom, um tipo com ‘chauffeur’ não deve estar muito interessado em vigarizar um mochileiro». Explico-lhe o que vou fazer à embaixada e o meu receio de não conseguir o visto. Mostro-lhe o meu livro.
«Não te preocupes, vou-te ajudar». Na embaixada, o Obi apresenta-me a todo o pessoal, faz passar o meu livro de mão em mão, dá ordens a torto e a direito, depois vira-se para mim: «Volta para a semana que tens o visto pronto». E desaparece, deixando-me ali especado, com o secretário consular subserviente à espera que eu termine de preencher o formulário. Saio para a rua a cantar e a tentar um sapateado «asteriano». Nem acredito.
Enquanto vou sapateando, viro a esquina da embaixada, entro na Praça da Unidade Africana e paro em frente de uma tabuleta carcomida pelo tempo e pela incúria: «Alameda do Príncipe Real». Este nome obsoleto lembra-me qualquer coisa. Mas o quê? Lá recordo o «mail»: foi aqui que nasceu a leitora Ana Amorim, nesta antiga Alameda do Príncipe Real que agora se chama Praça da Unidade Africana. Depois, com cinco anos, é que se mudou para a Rua Vereador Jaime Amorim, a rua com o nome do avô.
Nessa mesma tarde, encontro-me com José Fernandes, o amigo e ex-colega do Fernando Araújo. Transmito-lhe o abraço e pergunto se sabe onde seria a Rua Vereador Jaime Amorim. «Talvez o João Augusto saiba, espere um minuto», e telefona a um colega. São ambos directores de uma companhia de seguros, estou a incomodá-los durante o horário de expediente.
«Não, é um prazer», asseguram, num tom não muito convincente. O João Augusto vai ao gabinete buscar um livro que guarda como uma relíquia: um «Roteiro Toponímico da Cidade de Luanda», de 1974. O nome das ruas no tempo da colónia. Leio que a Vereador Jaime Amorim «começa na D. António Barroso da qual é a 4.ª perpendicular (...) e finda na General Norton de Matos». Os dois directores tentam perceber qual será hoje esta rua. Por fim, o João Augusto exclama: «É a que passa por baixo do cinema Karl Marx. É a do Comandante Stone».
Na rua onde a Ana Amorim viveu a adolescência, as casas encontram-se vedadas por cercas altas de madeira, e vigiadas por seguranças armados. Não é fácil conseguir uma fotografia que vença estes obstáculos. Os seguranças olham-me desconfiados. Tento não perder tempo. Numa esquina da rua, reparo na antiga tabuleta portuguesa, o nome do avô Amorim riscado e apagado do painel de azulejos, talvez com uma faca ou uma catana. Penso nesta raiva, nesta ofensa à memória colonial, nesta urgência de cancelar o passado português. Teria sido assim tão mau, este passado, para os angolanos? O professor Gerald Bender acha que foi. No livro Presença Portuguesa em Angola, Mito e Realidade chama a esse passado uma «crónica da destruição dos padrões sociais, económicos e políticos tradicionais de Angola - uma crónica que começou com a escravatura, prosseguiu com as ‘guerras de pacificação’ e o período do trabalho de contrato, e veio culminar com a reinstalação forçada de mais de um milhão de africanos durante a guerra» da independência.
Provavelmente, se eu fosse angolano teria feito o mesmo ao nome das ruas relacionadas com o passado colonial. Reparo que, no bairro da antiga Vereador Jaime Amorim, outras ruas mantêm nomes de portugueses: escritores, por exemplo. Jaime Amorim, sendo um vereador, estava relacionado com a administração colonial e, por isso, o nome saltou fora da toponímica luandense. Tal como as pontes e avenidas Salazar saltaram fora do território português depois da Revolução.
Deixo para trás a Comandante Stone, sigo pela Ramalho Ortigão, depois ainda pela Oliveira Martins, passo o cinema Karl Marx, recolho o passaporte na Praça da Unidade Africana, desço à marginal de todos os sonhos, entro no porto e procuro um barco para Cabinda. O que tinha a fazer em Luanda, está feito - é altura de prosseguir para o Norte.
«Ruas de Luanda»
por Gonçalo Cadilhe
Ao longo da minha viagem por África acima tenho tido a companhia virtual de vários leitores que vão enviando «e-mails» com palavras de apoio e amizade, também com informações e conselhos. Quando encontro o cibercafé, reencontro amigos.
Há umas semanas escrevi sobre o cantor romântico português Eduardo Jaime, um artista de sucesso na África do Sul entre as décadas de 50 a 70. Eu tinha conhecido por acaso o filho do falecido cantor, o Eddie da Silva, e assim surgiu o meu interesse pelo pai. Talvez houvesse um qualquer mistério no passado de Eduardo Jaime: desembarcou em Durban com 20 anos e nunca mais regressou a Lisboa, nunca respondeu às cartas da mãe, nem sequer comentou jamais com o filho a vida que tivera, a família que deixara, em Portugal.
Algum tempo depois desta crónica ter sido publicada, recebi um «mail» do leitor Fernando Araújo, do Porto, que tinha sido o companheiro de cabina de Eduardo Jaime, no transatlântico de Portugal para Angola, em 1952. Tinham ficado amigos. O Fernando Araújo convidava-me a ir ao Porto um dia para falarmos do cantor. E concluía: «Se o Gonçalo passar por Luanda, tenho lá um grande amigo. Vá visitá-lo e dê-lhe um abraço meu».
Entregar este abraço é uma das coisas que tenho para fazer em Luanda. Tenho também uma rua para descobrir: a leitora Ana Amorim, do Algarve, pede-me para lhe enviar uma fotografia da casa onde viveu até aos 18 anos: «A rua na altura chamava-se Vereador Jaime Amorim, que era o meu avô», esclarece a Ana, «mas agora já não deve ter esse nome». Estas são as coisas importantes. As urgentes são: encontrar um cargueiro para Cabinda e obter um visto para a Nigéria.
O visto para viajar pela Nigéria atormenta-me desde o início da viagem. Viajar pela Nigéria atormenta-me ainda mais, mas isso é outra história. Se pudesse, não ia por lá, mas as alternativas são poucas: ou atravesso o Chade, que está à beira de uma guerra civil; ou tento um hipotético cargueiro dos Camarões para o Benim, passando ao largo da Nigéria. Por enquanto, prefiro tentar o visto nigeriano.
Mas as embaixadas nigerianas têm a reputação de dificultar bastante a atribuição de vistos a turistas. Do hotel, telefono à secção consular a perguntar que documentos são necessários: três fotografias, um bilhete de avião de saída do país, um atestado do meu banco a comprovar a minha sólida conta bancária, uma carta de um cidadão nigeriano a convidar-me a visitar a Nigéria. Não tenho nada disto, só as fotografias. Ainda por cima, dizem-me que demora um mês. Antes de me dar por vencido, posso tentar uma conversa com o cônsul, explicar-lhe que estou a escrever sobre África e mostrar-lhe um livro meu. Mas não tenho muitas ilusões.
Ao lado do hotel encontra-se uma agência de viagens. Entro e pergunto direcções para a embaixada. «É ao pé da Praça da Unidade Africana, no bairro Miramar». Posso ir a pé? «Não, é muito longe». Um tipo sentado, talvez um cliente da agência, oferece-se para me levar lá. Quando saímos fala-me em inglês: «Chamo-me Obi, sou nigeriano». Começo a desconfiar, penso em todas as histórias de falcatruas e vigarices que se contam da Nigéria. «Só um minuto, que chamo o meu ‘chauffeur’». Telefona, aparece rapidamente um carro. Penso, já mais calmo: «Bom, um tipo com ‘chauffeur’ não deve estar muito interessado em vigarizar um mochileiro». Explico-lhe o que vou fazer à embaixada e o meu receio de não conseguir o visto. Mostro-lhe o meu livro.
«Não te preocupes, vou-te ajudar». Na embaixada, o Obi apresenta-me a todo o pessoal, faz passar o meu livro de mão em mão, dá ordens a torto e a direito, depois vira-se para mim: «Volta para a semana que tens o visto pronto». E desaparece, deixando-me ali especado, com o secretário consular subserviente à espera que eu termine de preencher o formulário. Saio para a rua a cantar e a tentar um sapateado «asteriano». Nem acredito.
Enquanto vou sapateando, viro a esquina da embaixada, entro na Praça da Unidade Africana e paro em frente de uma tabuleta carcomida pelo tempo e pela incúria: «Alameda do Príncipe Real». Este nome obsoleto lembra-me qualquer coisa. Mas o quê? Lá recordo o «mail»: foi aqui que nasceu a leitora Ana Amorim, nesta antiga Alameda do Príncipe Real que agora se chama Praça da Unidade Africana. Depois, com cinco anos, é que se mudou para a Rua Vereador Jaime Amorim, a rua com o nome do avô.
Nessa mesma tarde, encontro-me com José Fernandes, o amigo e ex-colega do Fernando Araújo. Transmito-lhe o abraço e pergunto se sabe onde seria a Rua Vereador Jaime Amorim. «Talvez o João Augusto saiba, espere um minuto», e telefona a um colega. São ambos directores de uma companhia de seguros, estou a incomodá-los durante o horário de expediente.
«Não, é um prazer», asseguram, num tom não muito convincente. O João Augusto vai ao gabinete buscar um livro que guarda como uma relíquia: um «Roteiro Toponímico da Cidade de Luanda», de 1974. O nome das ruas no tempo da colónia. Leio que a Vereador Jaime Amorim «começa na D. António Barroso da qual é a 4.ª perpendicular (...) e finda na General Norton de Matos». Os dois directores tentam perceber qual será hoje esta rua. Por fim, o João Augusto exclama: «É a que passa por baixo do cinema Karl Marx. É a do Comandante Stone».
Na rua onde a Ana Amorim viveu a adolescência, as casas encontram-se vedadas por cercas altas de madeira, e vigiadas por seguranças armados. Não é fácil conseguir uma fotografia que vença estes obstáculos. Os seguranças olham-me desconfiados. Tento não perder tempo. Numa esquina da rua, reparo na antiga tabuleta portuguesa, o nome do avô Amorim riscado e apagado do painel de azulejos, talvez com uma faca ou uma catana. Penso nesta raiva, nesta ofensa à memória colonial, nesta urgência de cancelar o passado português. Teria sido assim tão mau, este passado, para os angolanos? O professor Gerald Bender acha que foi. No livro Presença Portuguesa em Angola, Mito e Realidade chama a esse passado uma «crónica da destruição dos padrões sociais, económicos e políticos tradicionais de Angola - uma crónica que começou com a escravatura, prosseguiu com as ‘guerras de pacificação’ e o período do trabalho de contrato, e veio culminar com a reinstalação forçada de mais de um milhão de africanos durante a guerra» da independência.
Provavelmente, se eu fosse angolano teria feito o mesmo ao nome das ruas relacionadas com o passado colonial. Reparo que, no bairro da antiga Vereador Jaime Amorim, outras ruas mantêm nomes de portugueses: escritores, por exemplo. Jaime Amorim, sendo um vereador, estava relacionado com a administração colonial e, por isso, o nome saltou fora da toponímica luandense. Tal como as pontes e avenidas Salazar saltaram fora do território português depois da Revolução.
Deixo para trás a Comandante Stone, sigo pela Ramalho Ortigão, depois ainda pela Oliveira Martins, passo o cinema Karl Marx, recolho o passaporte na Praça da Unidade Africana, desço à marginal de todos os sonhos, entro no porto e procuro um barco para Cabinda. O que tinha a fazer em Luanda, está feito - é altura de prosseguir para o Norte.