TURISMO: "Estradas de Angola" - Gonçalo Cadilhe
Enviado: Qua Nov 01, 2006 20:02
Fonte: Expresso, via Angonoticias - Sep 16, 15:29
«Estradas de Angola»
por Gonçalo Cadilhe Expresso
A boleia para Luanda concretiza-se por fim : crónica dos piores mil quilómetros da viagem por África acima
Do lado de lá do telefone sugerem-me: «Tenha paciência». Dia após dia, ligo para os vários números que eventualmente me poderão arranjar uma boleia - um carro, um camião, qualquer coisa que siga para o Norte. Vale a pena ter paciência. Serão os piores mil quilómetros da minha vida, a distância que separa o Lubango de Luanda. A estrada foi sujeita a tudo durante trinta anos de guerra civil: minas, tanques, morteiros, bombardeiros, emboscadas, enxurradas. Não vale a pena ter pressa de viajar.
Tenho o contacto de alguns «stands» de automóveis que regularmente recebem carros novos, comprados na Namíbia. Desalfandegados na fronteira de Santa Clara, passam pelo Lubango antes de seguir para outras cidades de Angola. Depois de alguns falsos alarmes, arranjo por fim um lugar num grupo de carrinhas de caixa aberta, novinhas em folha, que seguem para a capital.
O Marinheiro, o chefe do grupo, explica-me os tempos de percurso: sairemos no dia seguinte por volta das 9 da manhã e, se tudo correr bem, estaremos em Luanda dois dias depois, pelo fim da tarde. Arrancamos afinal às 10h30, uma diferença de hora e meia não é nada neste épico de poeira e desolação que nos preparamos para enfrentar. O Marinheiro tem a minha idade, mas o dobro de vida: foi soldado na guerra, combateu, foi alvejado, sobreviveu, matou e viu morrer gente. Anda a conduzir por África há vários anos, as estradas de Angola não têm segredos para ele. Tento impressioná-lo com o meu curriculum: «Há dias, conduzi da fronteira até ao Lubango. Já andei por estradas muito más no Camboja e no Afeganistão, mas nunca vi nada como aquilo». Responde-me, com condescendência e palito nos dentes: «Essa estrada é filha desta». Desisto de o impressionar.
Avançamos pela artéria vital de Angola, o equivalente nacional de uma Route 66 dos mitos de um Steinbeck angolano, «the mother road», a mãe de todas as estradas. Possível título para um romance: «As Minas da Ira». «Marinheiro, e as minas?» A minha voz não esconde o nervosismo - de qualquer das formas já abandonei as pretensões de passar por duro à frente dele. Que prefere guiar por fora da estrada, pela berma e pelo mato, para evitar as crateras, os poços, os desfiladeiros que cosem o manto da nossa Route 66.
«Minas? Não te preocupes, há poucas». Tento não me preocupar, relendo mentalmente algumas passagens dum livrinho de Manuel Correia de Barros, Segurança Humana em Angola. Para o autor, os 14 milhões de minas supostamente ainda em território nacional são um número propositadamente inflacionado por vários grupos: «Uns com interesses materiais, devido ao alargamento dos prazos para a sua recolha, outros para arranjarem desculpas para o que está por fazer.» Esperemos que eu não venha a servir como estatística para uma dessas organizações humanitárias que cobram mil dólares por cada engenho desactivado.
A luminosidade embaciada do tempo do cacimbo harmoniza a beleza da paisagem. Atravessamos florestas de embondeiros, os elefantes do reino vegetal. O Marinheiro não percebe porque fico tão contente com cada novo embondeiro que nos passa ao lado. Explico-lhe que em Portugal não há: «Tu já nem reparas, mas a mim espantam-me sempre». Ele contradiz-me: «Sim, eu espanto-me também, mas só quando são grandes». Grandes? São todos enormes!
Metemos gasolina em Quilengues, mudamos de província em Cutengo, anoitece em Chongoroi. Tiro uma fotografia da ponte ao povo que se lava no rio. Uma tabuleta avisa que, nas margens, as minas talham as tábuas dos caixões dos imprudentes. Tiro também uma fotografia à tabuleta: uma caveira branca sobre fundo vermelho. A estrada massacra sempre, parte tudo o que se mete por este caminho que não existe - existe, sim, a sua negação, a barreira, a quase impossibilidade de prosseguir. Eu teria desistido, teria parado o veículo em cada novo obstáculo, confundido com a falta de possibilidades: Como passo este buraco? Entro nele? Ou contorno? Aponto uma roda por aquele veio de alcatrão e apoio a outra roda em cima dessa raiz? Ou saio pela berma e sigo pela floresta? A artéria vital de Angola é para mim um enigma de mil quilómetros de comprimento. Para o Marinheiro, é um livro aberto.
Felizmente avançamos devagar pela mãe de todas as piores estradas da minha vida: os carros têm de chegar intactos ao «stand» de Luanda. O conta-quilómetros está ainda desligado. Depois uma lavagem do pó, e com uns plásticos nos assentos por desembrulhar, o carro será posto à venda com meia dúzia de quilómetros marcados e um habitáculo a cheirar a novo. O comprador não precisa de saber a rodagem que já teve o veículo e, se ele não perguntar, ninguém lhe vai dizer.
Uma estrada assim dá cabo de qualquer carro em meia dúzia de viagens, e as poucas viaturas que se cruzam connosco parecem relíquias de um museu automóvel. «Marinheiro, olha para aquele camião. Aquilo é do tempo da guerra». O Marinheiro olha para mim perplexo. «Da guerra? Não, estás doido, tem pelo menos uns dez anos». Pois, de qual guerra?
Paramos para uma cerveja num bar de camionistas, a conversa cai sobre um ou outro buraco e a forma de o contornar. Nós temos entrado em buracos que nos engolem, deixamos de ver a superfície da estrada, e depois voltamos a sair. Mas um dos camionistas no bar transporta um caterpillar no seu camião. Sabe que não pode enfrentar um buraco assim: não cabe lá e, se fica metade do camião dentro e metade fora, o mais provável é o caterpillar desequilibrar-se e esparramar-se na estrada. Discutem-se possíveis soluções. Os camionistas despedem-se invariavelmente com mesma piadinha: «Lá à frente a estrada já está nova».
Fico a pensar na redundância do nome: Bar de Camionistas. Aqui só passam camionistas, não há outro tipo de condutores nem é possível nenhum outro tipo de veículos - os viajantes, em Angola, apanham um avião para se deslocar entre cidades. É pena, perdem uma das paisagens mais serenas e inacessíveis do continente. Penso naquela expressão italiana, ter o «male d’Africa», uma espécie de doença que contamina os europeus que chegam desprevenidos ao embrião da Humanidade. A terra entra no sangue, talvez mais fundo ainda. Passamos por outro embondeiro que nos chega da Pré-história. Reparo só eu; não é demasiado grande para os pasmos dos meus companheiros de viagem.
Dormimos em Benguela, a terra do Marinheiro. Dois dos motoristas do grupo, os irmãos Tedo e Neco, nasceram aqui, mas com a guerra fugiram para o Lubango. São novos na profissão e é a primeira vez que regressam a Benguela desde a infância. Tentamos encontrar a casa onde viviam, mas o tempo urge, Luanda espera os carros.
Arrancamos de novo. «A estrada agora está muito melhor», esclarece o Marinheiro, «vai ser mais fácil daqui para a frente». Penso que, em Portugal, onde persistem as piores estradas da Europa, uma estrada assim chegava para pedir a demissão do Ministério das Obras Públicas em bloco. Mas o Marinheiro tem razão, comparando com o que temos vindo a fazer, esta estrada está muito melhor. Chegamos a Luanda com os carros intactos, pelo menos para quem olhar para eles dentro do «stand». O contador dos quilómetros marca 60, os estofos cheiram a novo. O motor teve uma pequena rodagem, entretanto. Mas, se o comprador não perguntar, nada há que valha a pena informar...
«Estradas de Angola»
por Gonçalo Cadilhe Expresso
A boleia para Luanda concretiza-se por fim : crónica dos piores mil quilómetros da viagem por África acima
Do lado de lá do telefone sugerem-me: «Tenha paciência». Dia após dia, ligo para os vários números que eventualmente me poderão arranjar uma boleia - um carro, um camião, qualquer coisa que siga para o Norte. Vale a pena ter paciência. Serão os piores mil quilómetros da minha vida, a distância que separa o Lubango de Luanda. A estrada foi sujeita a tudo durante trinta anos de guerra civil: minas, tanques, morteiros, bombardeiros, emboscadas, enxurradas. Não vale a pena ter pressa de viajar.
Tenho o contacto de alguns «stands» de automóveis que regularmente recebem carros novos, comprados na Namíbia. Desalfandegados na fronteira de Santa Clara, passam pelo Lubango antes de seguir para outras cidades de Angola. Depois de alguns falsos alarmes, arranjo por fim um lugar num grupo de carrinhas de caixa aberta, novinhas em folha, que seguem para a capital.
O Marinheiro, o chefe do grupo, explica-me os tempos de percurso: sairemos no dia seguinte por volta das 9 da manhã e, se tudo correr bem, estaremos em Luanda dois dias depois, pelo fim da tarde. Arrancamos afinal às 10h30, uma diferença de hora e meia não é nada neste épico de poeira e desolação que nos preparamos para enfrentar. O Marinheiro tem a minha idade, mas o dobro de vida: foi soldado na guerra, combateu, foi alvejado, sobreviveu, matou e viu morrer gente. Anda a conduzir por África há vários anos, as estradas de Angola não têm segredos para ele. Tento impressioná-lo com o meu curriculum: «Há dias, conduzi da fronteira até ao Lubango. Já andei por estradas muito más no Camboja e no Afeganistão, mas nunca vi nada como aquilo». Responde-me, com condescendência e palito nos dentes: «Essa estrada é filha desta». Desisto de o impressionar.
Avançamos pela artéria vital de Angola, o equivalente nacional de uma Route 66 dos mitos de um Steinbeck angolano, «the mother road», a mãe de todas as estradas. Possível título para um romance: «As Minas da Ira». «Marinheiro, e as minas?» A minha voz não esconde o nervosismo - de qualquer das formas já abandonei as pretensões de passar por duro à frente dele. Que prefere guiar por fora da estrada, pela berma e pelo mato, para evitar as crateras, os poços, os desfiladeiros que cosem o manto da nossa Route 66.
«Minas? Não te preocupes, há poucas». Tento não me preocupar, relendo mentalmente algumas passagens dum livrinho de Manuel Correia de Barros, Segurança Humana em Angola. Para o autor, os 14 milhões de minas supostamente ainda em território nacional são um número propositadamente inflacionado por vários grupos: «Uns com interesses materiais, devido ao alargamento dos prazos para a sua recolha, outros para arranjarem desculpas para o que está por fazer.» Esperemos que eu não venha a servir como estatística para uma dessas organizações humanitárias que cobram mil dólares por cada engenho desactivado.
A luminosidade embaciada do tempo do cacimbo harmoniza a beleza da paisagem. Atravessamos florestas de embondeiros, os elefantes do reino vegetal. O Marinheiro não percebe porque fico tão contente com cada novo embondeiro que nos passa ao lado. Explico-lhe que em Portugal não há: «Tu já nem reparas, mas a mim espantam-me sempre». Ele contradiz-me: «Sim, eu espanto-me também, mas só quando são grandes». Grandes? São todos enormes!
Metemos gasolina em Quilengues, mudamos de província em Cutengo, anoitece em Chongoroi. Tiro uma fotografia da ponte ao povo que se lava no rio. Uma tabuleta avisa que, nas margens, as minas talham as tábuas dos caixões dos imprudentes. Tiro também uma fotografia à tabuleta: uma caveira branca sobre fundo vermelho. A estrada massacra sempre, parte tudo o que se mete por este caminho que não existe - existe, sim, a sua negação, a barreira, a quase impossibilidade de prosseguir. Eu teria desistido, teria parado o veículo em cada novo obstáculo, confundido com a falta de possibilidades: Como passo este buraco? Entro nele? Ou contorno? Aponto uma roda por aquele veio de alcatrão e apoio a outra roda em cima dessa raiz? Ou saio pela berma e sigo pela floresta? A artéria vital de Angola é para mim um enigma de mil quilómetros de comprimento. Para o Marinheiro, é um livro aberto.
Felizmente avançamos devagar pela mãe de todas as piores estradas da minha vida: os carros têm de chegar intactos ao «stand» de Luanda. O conta-quilómetros está ainda desligado. Depois uma lavagem do pó, e com uns plásticos nos assentos por desembrulhar, o carro será posto à venda com meia dúzia de quilómetros marcados e um habitáculo a cheirar a novo. O comprador não precisa de saber a rodagem que já teve o veículo e, se ele não perguntar, ninguém lhe vai dizer.
Uma estrada assim dá cabo de qualquer carro em meia dúzia de viagens, e as poucas viaturas que se cruzam connosco parecem relíquias de um museu automóvel. «Marinheiro, olha para aquele camião. Aquilo é do tempo da guerra». O Marinheiro olha para mim perplexo. «Da guerra? Não, estás doido, tem pelo menos uns dez anos». Pois, de qual guerra?
Paramos para uma cerveja num bar de camionistas, a conversa cai sobre um ou outro buraco e a forma de o contornar. Nós temos entrado em buracos que nos engolem, deixamos de ver a superfície da estrada, e depois voltamos a sair. Mas um dos camionistas no bar transporta um caterpillar no seu camião. Sabe que não pode enfrentar um buraco assim: não cabe lá e, se fica metade do camião dentro e metade fora, o mais provável é o caterpillar desequilibrar-se e esparramar-se na estrada. Discutem-se possíveis soluções. Os camionistas despedem-se invariavelmente com mesma piadinha: «Lá à frente a estrada já está nova».
Fico a pensar na redundância do nome: Bar de Camionistas. Aqui só passam camionistas, não há outro tipo de condutores nem é possível nenhum outro tipo de veículos - os viajantes, em Angola, apanham um avião para se deslocar entre cidades. É pena, perdem uma das paisagens mais serenas e inacessíveis do continente. Penso naquela expressão italiana, ter o «male d’Africa», uma espécie de doença que contamina os europeus que chegam desprevenidos ao embrião da Humanidade. A terra entra no sangue, talvez mais fundo ainda. Passamos por outro embondeiro que nos chega da Pré-história. Reparo só eu; não é demasiado grande para os pasmos dos meus companheiros de viagem.
Dormimos em Benguela, a terra do Marinheiro. Dois dos motoristas do grupo, os irmãos Tedo e Neco, nasceram aqui, mas com a guerra fugiram para o Lubango. São novos na profissão e é a primeira vez que regressam a Benguela desde a infância. Tentamos encontrar a casa onde viviam, mas o tempo urge, Luanda espera os carros.
Arrancamos de novo. «A estrada agora está muito melhor», esclarece o Marinheiro, «vai ser mais fácil daqui para a frente». Penso que, em Portugal, onde persistem as piores estradas da Europa, uma estrada assim chegava para pedir a demissão do Ministério das Obras Públicas em bloco. Mas o Marinheiro tem razão, comparando com o que temos vindo a fazer, esta estrada está muito melhor. Chegamos a Luanda com os carros intactos, pelo menos para quem olhar para eles dentro do «stand». O contador dos quilómetros marca 60, os estofos cheiram a novo. O motor teve uma pequena rodagem, entretanto. Mas, se o comprador não perguntar, nada há que valha a pena informar...