
O então Zaire, país de dimensões continentais localizado na áfrica central, antigo Congo Belga e desde 1996 chamado República Democrática do Congo, após a derrubada do Ditador Mobuto Sese Seko, teve sempre um dos registros aeronáuticos mais interessantes do mundo.

De fato, nos anos 80, 90 e início dos 2000 operaram sob seu prefixo nacional “9Q” uma série de aeronaves clássicas que fizeram do país um verdadeiro museu a céu aberto. Ali voaram os últimos Caravelle em voos regulares pela Wetrafa, o mais antigo 727-100 (pela Congo Airlines) e 737-200 (pela Hewa Bora), os últimos Boeing 720 pela New ACS, o último Bristol Britannia pela BCF, entre outros.
Ainda hoje, uma verdadeira relíquia opera por lá, ainda que somente em raras ocasiões, na forma do Boeing 707-138B 9Q-CLK, fabricado em 1959. Trata-se do mais antigo jato comercial ainda em atividade, operado pelo governo em voos presidenciais (mais sobre a história do 9Q-CLK em: http://www.cavok.com.br/blog/aviacao-co ... e-50-anos/" onclick="window.open(this.href);return false;).

Acima: O mais antigo jato comercial ainda em atividade, operado pelo Governo do Congo, o 707-138B 9Q-CLK, visto em 2013 em NY (Mark Szemberski/Jetphotos.net)
Desprovido de recursos, com falta de rodovias e com uma massa enorme de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, aliado a uma agência de aviação civil sem maiores exigências para o registro e operação de aviões, não é difícil perceber porque o país africano foi o destino final de muitos clássicos que em outros continentes já haviam há muito sido aposentados.
Além dos exemplos citados acima, o Zaire foi também o último local onde voaram regularmente os clássicos 707-400, modelo de longo alcance do 707 equipado com os motores Rolls Royce Conway mk508, primeiros concebidos com a tecnologia by-pass, onde parte do fluxo não passa pela queima, mas é somente acelerado em volta da área quente, possibilitando uma redução no consumo específico de combustível. Entre 1960 a 1963 a Boeing fabricou e entregou trinta e sete unidades do 707 “Rolls-Royce”, tendo por operadores iniciais as inglesas BOAC e Cunard, além da Varig, EL AL, Lufthansa e Air India.
No Zaire os últimos operadores de 707-400 nos anos 90 foram três companhias: a BCF – Bussiness Cash Flow Aviation, Blue Airlines e a New ACS, cada uma voando com um exemplar.
A BCF e a Blue Airlines operaram com o 707-441 9Q-CMD, que era nada menos do que o ex-Varig PP-VJJ, entregue originalmente para a Varig em novembro de 1963 e último da série a deixar a linha de produção da fábrica de Renton. Em setembro de 1979 a Varig aposentou o PP-VJJ juntamente com o PP-VJA e os vendeu à empresa norte americana especializada em perfuração de poços de petróleo, localizada em Houston, Texas, a Rowan Drilling Corporation – “RDC Marine”, onde receberam as matrículas, respectivamente, N58RD e N59RD. Em 1989 a BCF compraria ambos 707-441 da RDC Marine, sendo que o N59RD - que foi um dia o histórico PP-VJA, primeiro 707 a operar na Varig em meados de 1960 -, seria utilizado apenas como fonte de peças, sendo desmontado.

Acima: O N58RD visto em MIA em fevereiro de 1989, já fora de serviço, pouco antes de ser adquirido pela BCF, voou na Varig entre 1963 a 1979 como PP-VJJ (Flávio Amaral)
O 9Q-CMD, ex-N58RD, foi batizado de “Munya Matapa” e recebeu as cores completas da empresa africana. Ao deixar o aeroporto de Miami em voo ferry para Ostende, Bélgica, em 31 de outubro de 1989, foi o último avião equipado ainda com jatos “Estágio 1” a operar em MIA! De Ostende o ‘CMD prosseguiu para a capital do Zaire, Kinshasa, na manhã de 4 de novembro. De notar que o ferry desse trecho foi feito com um motor “inop”.
Embora não tivesse porta de carga, na BCF o 9Q-CMD operou em configuração mista de carga e passageiros em voos domésticos, podendo acomodar até 60 pessoas em classe única. Imagine-se você voando entre Kinshasa e Lubumbashi, em um 707-400 no início dos anos 90!

Acima: O 9Q-CMD, ex-N58RD, em MIA em outubro de 1989, já em full cs BCF aguardando o voo de entrega para o Zaire, via Ostende (Nick Mills)
Em novembro de 1991 o ‘CMD foi vendido para uma associada da BCF, a empresa Blue Airlines.
Contudo, o 9Q-CMD infelizmente não voaria por muito tempo, sendo declarado danificado além de recuperação econômica, quando ao pousar na cidade de Goma, no extremo leste do Zaire, em 1º de maio de 1993, uma de suas veneráveis Rolls Royce Conway explodiu.
O título de última operadora da série ‘400 no mundo coube à New ACS (antes denominada ACS – Air Charter Services) que havia adquirido em dezembro de 1989 um modelo ‘436, fabricado originalmente em 1963 para a Cunard e registrado 9Q-CTK. Em maio de 1990 o avião contava com um total de 60.239 horas de voo totais acumuladas.

O 707-436 9Q-CTK ainda nas cores da ACS, visto em Lubumbashi
O 9Q-CTK foi visto operando ainda em junho de 1993 e depois fora de serviço, parado no aeroporto da capital, chamado de N’Djili, em novembro de 1994. Já em 1995 foi visto sem várias partes, em processo de desmonte.

Acima: Já nas novas cores e nome NEW ACS, o 9Q-CTK foi o último "707 Rolls-Royce" operacional no mundo (Ugo Vicenzi)
Assim acabou anonimamente o legado dos 707 da série ‘400 no mundo, após mais de 30 anos de operações, tendo a aeronave uma página merecida na história da aviação comercial, por ser a primeira equipada com motores de tecnologia by-pass, hoje a regra na aviação, como os motores turbofan.
Marcelo Magalhães